Pegadas de Jesus

Pegadas de Jesus

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

UMA CRIANÇA, UMA LÁGRIMA, UM LENÇO...

Saí da Escola apressada, e andei a passos largos, quase correndo, em direção à Prefeitura. Era quase meio dia. Sentia fome e calor, mas estava determinada a atingir o meu objetivo. Olhei mais uma vez para dentro da bolsa, a fim de me certificar de que a carta estava lá. Minutos depois, cruzei o limiar da porta principal, do prédio da Prefeitura, e segui em direção ao Gabinete do prefeito. Àquela hora, todos os dias, ele despachava.

A porta do Gabinete ainda estava trancada, e o rol à frente, estava repleto de gente, todos adultos. Alguns me olhavam de soslaio, como a imaginar o que eu estaria fazendo ali, num lugar de gente grande. Eu sentia meu corpo tremer, de nervosismo. Mas era preciso. E quando precisamos, dizia minha mãe, devemos ser humildes, e buscar o que queremos sem medo e sem vergonha.

A porta se abriu. O povo avançou, e por breves instantes, se fez um pequeno tumulto. Todos queriam salvaguardar um bom lugar, próximo à mesa do prefeito, para garantir atendimento rápido. Quase me atropelaram. Rodopiei no meio da confusão, mas, por fim, saí ilesa, e me juntei aos demais, bem atrás do aglomerado que se formou.

As horas passavam rapidamente. A fome aumentava. E angustiava-me saber que depois de tudo, precisava caminhar uns três quilômetros para chegar em casa, num escaldante sol de verão, bem nordestino.

O prefeito despachava junto aos adultos que, às vezes, saíam satisfeitos, outras, saíam contrariados, mas, todos eram atendidos, um por um. Era tudo muito lento, a meu ver. Por um momento pensei em desistir, sair dali correndo, ir para casa descansar, comer , mas, o senso de responsabilidade, aliado à necessidade, me obrigaram a ficar, quietinha, aguardando a minha vez.
Quando eu começava a me aproximar da mesa, achegava-se um adulto, e passava à minha frente, e eu, indefesa e humilhada, ia ficando para trás. A fome e a sede estavam me torturando, e sem querer, comecei a chorar baixinho, mas, percebendo o meu erro, sufoquei as lágrimas, e limpei os olhos com as costas das mãos.

Neste momento, num vão por entre as pessoas, o prefeito me viu, e perguntou aos presentes, de quem era aquela criança. Ninguém respondeu, apenas balançaram a cabeça negativamente. O prefeito pediu que as pessoas abrissem passagem, e me chamou para junto de si. Pediu que a secretária me trouxesse um copo d’água e com um lenço enxugou uma lágrima que teimosamente caía dos meus olhos.
Perguntou a que vim, e eu, toda trêmula, entreguei-lhe a cartinha que eu mesma tinha feito, mas que assinara como se fosse minha mãe, pedindo ajuda para comprar os livros da 5ª série.

Minha mãe me advertira que eu só iria estudar até a 4ª série, pois que não tinha condições de me manter na Escola. Apesar de ser Escola pública, o material não era doado, como nos tempos atuais. Os livros adotados eram muitos, e caros, e tornou-se um grande empecilho, e um grande desafio. Mas tanto insisti que ela me permitiu estudar por mais um ano.
Ela teve a idéia de pedir ajuda na Prefeitura, com a condição de eu mesma ir lá, entregar a sua carta, pois, na ocasião ela tinha crianças pequenas e não podia sair de casa. E eu fui, apesar de tímida, e de insegura, mas, nada era mais importante para mim, do que permanecer na escola.

O prefeito desdobrou o papel que eu lhe entregara, e leu demoradamente. A espera foi cruel. Às vezes me olhava, depois voltava os olhos para o papel, e assim sucessivamente, por minutos que pareceram eternos, dado o meu nervosismo incontrolável.

Perguntou-me, enquanto dobrava a carta, onde eu morava, e sobre meus pais, se trabalhavam, e ouviu atentamente minhas respostas, que saíam entre lágrimas. Deu-me outro lenço. Pediu-me para não chorar, e disse que atenderia o meu pedido.
Apanhou um talão em cima da mesa e pôs-se a escrever, depois destacou a folha em que escrevera e assinou, carimbou, e me disse que fosse à Livraria receber meus livros, todos eles, que eram em número de oito a nove.

Eu agradeci, e quando ia me retirando, ele me chamou de volta, e disse-me que a porta do seu Gabinete estaria sempre aberta, e que eu voltasse, sempre que precisasse. Que admirava crianças e jovens esforçados, que lutavam com afinco para garantirem seu lugar ao sol. Olhou para os presentes que estavam calados, e citou-me como exemplo. Apertei sua mão, como faziam os adultos, agradeci, e saí alegre, saltitando, sem sequer me lembrar da fome, ou do calor, e mesmo dos três quilômetros que iria andar à pé. Teria meus livros. Quanta felicidade!

Rumei para casa sorridente, levando a autorização na bolsa, como se fosse um troféu. Sim, em parte era um troféu, pois, era o resultado da minha luta interior, contra o medo, a humilhação, a timidez, o desconhecido mundo de gente grande. No outro dia, eu ficaria com as crianças, e minha mãe iria pegar os livros, todos novinhos. Parecia um sonho.


A perseverança me fez avançar, e consegui terminar meus estudos, me formar, me profissionalizar... Cresci, venci muitos desafios, tornei-me cidadã, mas, nunca me esqueci do gesto nobre do prefeito. E sempre tive por ele um grande respeito, não somente pela minha experiência, mas também pelo homem público que ele foi, honrado e cumpridor dos seus deveres, por vários mandatos consecutivos, no Legislativo e no Executivo Municipal (como hoje infelizmente não se vê). Quando adulta, tive oportunidade de agradecer-lhe pessoalmente, e o fiz com grande emoção, e percebi o quanto foi importante para ele ter esse retorno. Ele não se encontra mais neste mundo, já fez sua passagem, mas, o seu exemplo e a sua memória, são dignos de nota. Um homem de bem, um homem da luz.

(Por Socorro Melo)

3 comentários:

Lúcia Soares disse...

Que lindo texto, linda história, linda menina.
Quem quer, faz, amiga.
Que vida linda e produtiva, a sua, apesar de tantas dificuldades.
Beijo!

Eliane disse...

Socorro essa é tua historia?
Sendo ou não é uma historia linda de coragem e perseverança. Minha amiga tive lagrimas nos olhos pela menina, mas sorrio pela mulher que se formou ali. Cada vez mais gosto de ser sua amiga. Um beijo grande da Eliane.

Socorro Melo disse...

Ops! Calculei mal. Eu precisava caminhar à pé uns três quilômetros, e não oito. Perdão, já corrigi.

Meninas, esta é parte da minha intensa história de vida, sem tirar, nem pôr.

Obrigada pelo imenso carinho e amizade.

Um grande abraço
Socorro Melo