Pegadas de Jesus

Pegadas de Jesus

quinta-feira, 30 de junho de 2016

DUDA

  
Quando perguntei para uma pessoa do lugar onde morava Duda, ela ficou surpresa e perguntou:

-          A deficiente? De onde você conhece? – Perguntou. E indicou-me o caminho.

Seguimos, pois não estava só, pelas ruas estreitas da Vila, e a poucos metros localizei a casa da minha amiga. Fomos recebidas com alegria efusiva, característica bastante peculiar a Duda. Conversamos por longo tempo, e quanto mais eu entrava no universo dela, mais intrigada eu ficava.

Olhando para o seu rosto, iluminado por um sorriso espontâneo, recordei da nossa infância. Duda era bem diferente de mim, mas, sempre fora uma grande amiga. Eu gostava de estudar, era tímida, calada, comedida, e Duda, o oposto. Não gostava de estudar, era extrovertida, tagarela, e sem limites.

Lembrei de uma de suas maiores travessuras: morávamos bem perto uma da outra. A minha casa situava-se numa rua transversal à rua em que ela morava. Numa tarde de verão, quando o sol já declinava no horizonte, ouviu-se grande burburinho na rua. Da minha janela, observei grande movimento à frente de sua casa, e corri até lá, para ver o que acontecera.

O lugar onde morávamos era um pequeno povoado, um bairro afastado da cidade, cerca de cinco a sete quilômetros. E imagino que metade da população se postava diante da casa de Duda, naquela tarde.

O que aconteceu? – perguntei a alguém. E responderam-me que pela terceira vez, naquele dia, eram jogadas pedras sobre o telhado da casa. A família já havia investigado, procurado, e não tinha a menor idéia de onde pudessem vir as misteriosas pedras.

O povo do interior nordestino é chegado a crendices, e logo se instalou a idéia de que havia por lá uma alma penada, jogando pedras sobre a casa de Duda. É assombração, diziam. Mandem chamar o padre, ou alguém para benzer a casa. Naquela tarde as pedras não incomodaram mais, porém, no dia seguinte, o pesadelo voltou. E assim, se sucedeu por vários dias, até que, depois de acurada vigilância, descobriu-se a origem das pedras voadoras: Duda. Essa aventura rendeu-lhe uma boa surra, no entanto, não seria uma coisinha assim, sem importância, que lhe tiraria o gosto pelas travessuras.

E Duda aprontou todas, sempre com um sorriso enorme nos lábios, e uma indiscrição fora do comum. Era dinâmica, serelepe. Gostava de correr, de pular, de cavalgar...

Um dia, voltávamos do açude, carregando latas d’água na cabeça. Quando estávamos bem próximas de nossas casas, eu perdi o equilíbrio e a minha lata caiu, derramando toda água, obviamente. A casa dela estava a poucos metros, porém, ela rindo descontroladamente da minha desventura, derramou a água de sua lata, e voltou comigo ao açude. E era assim. Com Duda, as surpresas eram incessantes.

Saí do meu devaneio, do turbilhão de recordações, e vi Duda ali na minha frente, agora adulta, agora deficiente. Passados tantos anos, nos encontrávamos de novo. Todavia, o que me intrigava, era a força que tinha a minha amiga. Foi amputada ainda jovem, devido a um problema de saúde que desconheço, pois nunca lhe perguntei sobre isso, depois, lutou ferrenhamente contra um câncer, e ganhou a luta, e por fim, quando cheia de esperanças se preparava para colocar a prótese da sua perna, que era o seu grande sonho, sofreu um terrível acidente, que machucou seriamente a perna sã.

Duda encarou e encara toda essa, digamos, desventura, com muita garra e determinação. Não se lamenta, não se atormenta, e não se diminui. É cheia de esperanças, de sonhos, e faz a vida acontecer. Conhece suas limitações, porém, não se comporta como um ser imprestável, inútil, pelo contrário, é sinônimo de fortaleza, de alegria, e de coragem.

Cuida da sua casa com esmero. Ela mesma desempenha todas as atividades domésticas: lava, passa, cozinha, limpa... E administra suas parcas finanças e seus interesses com sabedoria. Em suma, um exemplo, uma lição de vida.


Penso que toda energia que existia na Duda criança foi transportada para a Duda adulta, de forma admirável. Quando a vi pela primeira vez, na condição de deficiente, de cadeirante, fiquei penalizada, porém, em poucos minutos, senti vergonha de mim mesma, diante da grande lição de vida que ela me transmitia, sem palavras, mas com  atitudes.

Por Socorro Melo

domingo, 12 de junho de 2016

O VALIOSO TEMPO DOS MADUROS



Contei meus anos e descobri que terei 
menos tempo para viver daqui 
para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.

Sinto-me como aquele menino que
recebeu uma bacia de cerejas.As primeiras,
ele chupou displicente, mas percebendo
que faltam poucas, rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam
egos inflamados. Inquieto-me com invejosos
tentando destruir quem eles admiram,
cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

Já não tenho tempo para conversas intermináveis,
para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias
que nem fazem parte da minha.

Já não tenho tempo para administrar melindres
de pessoas, que apesar da idade cronológica,
são imaturos.

Detesto fazer acareação de desafetos
que brigaram pelo majestoso cargo de secretário
geral do coral. As pessoas não debatem conteúdos,
apenas os rótulos.

Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos,
quero a essência, minha alma tem pressa.

Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado
de gente humana, muito humana;
que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com
triunfos, não se considera eleita antes da hora,
não foge de sua mortalidade, caminhar perto de
coisas e pessoas de verdade,
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencal!.

Mário de Andrade