Pegadas de Jesus

Pegadas de Jesus

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

BATISMO DE FOGO



Dificilmente conseguimos associar beleza e sofrimento. Em nossa concepção, normalmente, pintamos o sofrimento com cores mais sombrias. No entanto, é possível percebermos o belo nas experiências de dor.

 Na tela da minha mente as imagens iam se moldando, à medida que a senhora Engrácia me contava a sua história. Quem por ventura se aproximasse de nós, e se pusesse a escutar aquela história, a partir daquele instante, poderia imaginar que sem sombra de dúvidas, tratava-se de um filme, de terror.

As cenas eram chocantes.Contava-me ela, com os olhos marejando, como ocorrera o assassinato de sua filha, há quinze anos. Dizia-me que presenciara toda cena, e que o tempo apenas conseguira retirar o desespero e suavizar a dor, porém, o sentimento de perda  permaneceu constante.

Eu, que sou mãe também, tentei à custa, me colocar no lugar daquela mulher. Uma sensação incrivelmente desconfortante se apoderou de mim. Não consegui imaginar meu filho no lugar da filha dela, é inconcebível para uma mãe chegar a esse ponto.

À medida que ela  narrava-me a maneira brutal e injusta de como perdera sua filha, invadia-me uma certa revolta. Em poucos instantes eu me encontrava mais emocionada do que ela. Percebia até que ponto o sofrimento e a dor podem nos assaltar, e o quanto a impotência nos limita. Percebia a nossa vulnerabilidade, a nossa fragilidade diante da vida.

Perante tudo o que ouvia, surpreendeu-me imensamente o final da história: a senhora Engrácia perdoara o assassino de sua filha. Em momento algum durante a sua narrativa, referiu-se a ele se utilizando de palavras ásperas, nem proferiu qualquer maldição e nem percebi no seu semblante qualquer gesto que denotasse ódio, mágoa ou ressentimento.

Enquanto minha pobre mente já fazia julgamentos sobre aquele infeliz que tinha roubado a vida daquela jovem, meus olhos quase arregalados se encantavam com a beleza do que viam à frente: a beleza no sofrimento. Só tristeza.

Como é possível para uma mãe, perdoar de verdade, alguém que lhe rouba o que há de mais precioso em sua vida, um filho? Custava-me acreditar que isso fosse possível. Mas, diante de mim estava a realidade não crível: a senhora Engrácia.

Ela cresceu tanto diante de mim, que quase não conseguia vê-la. Seus cabelos brancos, e as marcas visíveis da passagem do tempo, no seu rosto, concebiam-lhe um ar quase sobrenatural. Procurei, disfarçadamente, ver sua auréola. Meu Deus, pensei emocionada, como é tão grande a nobreza daqueles que sabem perdoar! E como me incomodou constatar que estou ainda tão distante dessa grandeza de espírito.

Depreendi o belo, oculto no sofrimento. Não nas atitudes de rudeza, de selvageria, mas na elevação espiritual de uma alma entregue ao amor de Deus,  que se tornou capaz de perdoar, e de absolver uma outra tão necessitada de misericórdia. A grandiosidade do perdão, a sua particularidade, incita em nós, quando nos deixamos por ela envolver, uma ardente vontade de amar, e de rever nossos conceitos e nossas desarmoniosas concepções. Sou-lhe muito grata, senhora Engrácia, por dividir comigo o momento mais doloroso, mas também o mais nobre da sua vida, o seu batismo de fogo, a candura da sua alma.

(Socorro Melo) 

2 comentários:

pensandoemfamilia disse...

O sofrimento nos lança num buraco negro e em sua narrativa veio a luz divina do perdão que liberta. bjs

Elvira Carvalho disse...

É preciso de uma sublime grandeza de espirito, para perdoar uma tão grande dor.
Eu não conseguiria fazê-lo.
Um abraço