Augusta apertou a cabeça entre as mãos, e a movimentou inúmeras vezes, como que para afugentar a agonia.
Naquela manhã, sentia-se cansada, sem ânimo, e resolveu ficar na cama por mais algum tempo. Virava-se, no entanto, de um lado para o outro, sem conseguir relaxar. Tornara-se insone, e há vários dias não dormia bem.
A mente mais parecia um redemoinho. Em frações de segundo, vieram à tona, todos os seus conflitos. Relembrava com angústia do seu casamento tumultuado, e de todas as ingratidões que o marido lhe fizera. Relembrava de todas as dificuldades que passara com os filhos, para os educar. Relembrava de tantos ideais e sonhos que tivera que abdicar.
Agora estava ali, sozinha. O marido se fora. Os filhos tomaram seus rumos na vida. E ela? O que restou?
Sentiu uma lágrima quente escorrer por sua face. Desvencilhou-se das cobertas, e levantou cambaleante. Dirigiu-se para a cozinha. Enquanto punha uma panela no fogo, debulhava-se em lágrimas, e se perguntava: o que fiz da minha vida? O que tenho eu, de fato?
Ninguém a havia preparado para a solidão. Amava os filhos, decerto, mas, não queria ser um peso em suas vidas. Cada um vivia agora segundo seus interesses, e cuidando, cada qual, da sua própria família.
Sentou-se pensativa, diante de uma xícara fumegante, e se sentiu amargurada. Era como se estivesse na reta final da vida, sem tempo de criar algo novo, e entristecida por ter aproveitado tão mal o seu tempo.
Pôs-se de pé para a execução de algumas tarefas, porém, viu-se impotente. Saiu à rua para desanuviar os pensamentos, e sem se programar empreendeu longa caminhada. Quando voltou, os primeiros raios de sol já se escondiam no horizonte.
Cruzou o limiar da porta, e viu sua filha correr ao seu encontro, preocupada. Ao invés de tranqüilizá-la, foi áspera. Queria ficar só, pensar na sua vida, tentar se desvencilhar da angústia que lhe torturava os pensamentos.
Perdera a vontade de lutar. Lutar para que? Já tinha feito isso por tanto tempo, e o que ganhara com isso? Percebia agora que nem seus filhos a amavam. Ninguém a amava, na verdade, ninguém nunca a amou.
Ela sim havia amado muito. Por anos a fio se desdobrou em cuidados e atenções. De que lhe serviram? O que fizera da sua vida?
Tomou um tranqüilizante e se deitou, todavia a mente, em torvelinho, não parava de gritar. Em sua alma inquieta se abriram sulcos de mágoas e de ressentimentos, e por longos instantes os remoeu.
No dia seguinte, levantou-se mais cedo do que de costume. Pôs-se diante do espelho, e começou a contornar o próprio corpo com as mãos. Segurou firmemente os seios, levantou os olhos, alisou os cabelos, sorriu, e por um bom tempo se deixou ficar ali. Havia um novo brilho no seu olhar, estranho, mas havia. Resolvera-se. E era melhor do que continuar naquela agonia.
Provou diversas roupas, e sapatos, e finalmente se decidiu. Estava satisfeita consigo mesma. A partir daquele instante, ela, Augusta, era uma nova mulher. Por que não pensara nisso antes? Quem lhe impedira?
Ela era uma mulher livre, e, portanto agora, iria aproveitar a vida como jamais fizera. Primeiro, faria um regime, pois estava muito gorda, depois, providenciaria um novo guarda-roupa. Mas, de imediato já podia adquirir produtos de maquiagem, algumas bijuterias, pois, há muito negligenciara com sua própria aparência.
Passou o dia fora, fazendo compras. O dia seguinte também. E assim, se sucederam outros dias. À noite, não dormia. Tinha medo de dormir, pois, ao encostar a cabeça no travesseiro, despertava seus piores pesadelos. Então bebia. A bebida sim lhe trazia certo alívio. E ao amanhecer, empreendia nova caminhada.
Já não cuidava do próprio asseio, nem da casa, que estava entregue a imundície. E todo dia, cuidava de adquirir coisas novas, supérfluas, e se deleitava com elas.
Agora tinha companhia: a Bárbara. Como alguém poderia negligenciar uma boneca tão linda? - Há mesmo muita gente descuidada - pensava. Mas, a Bárbara, agora seria bem tratada.
E à medida que os dias iam passando, Augusta cumulava Bárbara de mimos, e trazia-lhe novas companhias, do lixo.
Contas e mais contas se amontoavam na caixa do correio. A desordem e a sujeira imperavam no recinto de sua casa.
Augusta oscilava entre um estado mórbido e uma euforia descontrolada. Ria alto e estridentemente. Chorava horrores. Sentia medo. Sabia que estava sendo perseguida. Sim, eram três homens, usando enormes capas pretas, que a seguiam sempre, e mesmo na sua própria casa, os via. Arremessava objetos sobre eles. Eles se escondiam, mais depois voltavam. E entravam no seu sonho... Quer dizer, no seu pesadelo...
Sentia-se frágil. Quem seriam os homens de capa preta? Deduzira que o marido os mandara. Seria possível? Mesmo no túmulo ele ainda viria perturbá-la? E passou a carregar pedras, para se defender dos homens. E escondia Bárbara, para que não a molestassem.
Bebia. Chorava. Sofria. Arremessava pedras, objetos... Até que, um anjo, muito branco, passou a vigiá-la. Ele não se descuidava dela, por nada. Afugentava os homens de preto, e tratava Bárbara com carinho. Ele sim, a amava.
Sua cabeça estava mais leve. Já conseguia dormir. Aliás, era tudo que conseguia agora. Não tinha mais medo. E confortava-lhe saber que o anjo de branco estava ali...
Havia transposto a linha, a linha da razão. Era tênue, como saber? Não existiam degraus, graus, nada... Do outro lado estava a loucura. Seria possível voltar? A razão é um cristal fino... Uma vez quebrado... é possível emendá-lo? Não importava, ela agora se sentia segura, pois, o anjo de branco cuidava dela.
Por Socorro Melo