Dedico este post ao amigo Luciano que hoje encerrou sua trajetória nesta terra, e à sua mãe, com os meus sinceros sentimentos... Só muda os personagens, a dor é a mesma ...
"Olhei emocionada para a
fotografia à minha frente. Era a La Pietá de Michelangelo. Pensei em Nanda, e
em Dona Sofia. A Pietá sempre me emociona, pois, o artista soube transmitir com
muita originalidade a dor de uma mãe que põe nos braços um filho morto: é uma
dor descomunal, uma tristeza ímpar, um desespero sem nome. Tantas vezes já vi
fotografias dessa obra, em livros, na rede mundial de computadores, mas, dessa
vez foi diferente, pois, a fotografia em minhas mãos, foi tirada por mim.
Estive ali, me espremendo no meio de pequena multidão, para ver de perto a obra
original de Michelangelo que está exposta na Basílica de São Pedro, no
Vaticano. E eu a vi, e me emocionei, pela oportunidade que representou para mim
aquele instante. Mas, por que me lembrei de Nanda, e de sua mãe?
Porque um dia eu
as vi assim, como na Pietá. Porque as lágrimas de Dona Sofia, o desespero e a
dor eram iguais ao da virgem Maria. Porque Nanda jazia morta, num triste caixão
à sua frente, e ela não podia fazer mais nada. Porque ela não desgrudava de
perto, porque segurava as mãos da filha com tanto carinho, como se pudesse, num
passe de mágica, reverter àquela situação, dar-lhe de novo à luz, ou acordar de
um terrível pesadelo.
Nanda
dedicara-se à mãe, desde que a mesma sofrera um AVC. Praticamente não tinha
mais vida própria. Seu mundo era o trabalho, e até mesmo esse, já havia sofrido
interferências, e a sua casa, onde em tempo integral cuidava dela.
A família era
pequena: apenas ela, a mãe, e mais uma irmã e um irmão, que moravam fora, com
suas respectivas famílias. E Nanda vivia apenas com sua mãe, que dela dependia
totalmente. Fazia-lhe todos os gostos, tratava-a com carinho, era paciente, e
não lhe deixava faltar nada.
Dona Sofia, que era
octogenária, vez por outra, tinha fortes crises e precisava ser hospitalizada e Nanda, se afastava do trabalho para acompanhá-la. Nesses momentos, chamava a
irmã, para ajudá-la, mas, se a situação não fosse muito grave, nem isso ela
fazia. Os amigos advertiam-na, para que não se sobrecarregasse tanto, pois,
isso poderia ter conseqüências na sua saúde, mas Nanda, não se preocupava muito
com isso. Queria poupar a todos de sofrimentos. E por muitos anos, viveram
assim. Ela era bem humorada, apesar de como vivia. E não deixava que a tristeza
se apoderasse de sua mãe, sempre tinha uma história engraçada pra contar... E dona Sofia, apesar das limitações, parecia feliz. Nanda era o seu sustentáculo,
junto com sua fé.
Até que um dia,
o coração de Nanda não agüentou tanta pressão, e ela se foi, de forma súbita,
inesperada...
Na manhã daquele
dia eu a encontrei, sentada em um banco, aguardando a sua condução para o
trabalho. Tudo parecia normal, nada denotava que naquele dia a vida teria um
desfecho diferente. Cumprimentamo-nos, sorrimos, e eu prossegui minha
caminhada, sem sequer imaginar que aquela seria a ultima vez que eu a veria com
vida.
E assim foi. Só
mais tarde, quando recebi a notícia da sua morte, refleti sobre tanta coisa, e
mais especialmente, sobre a efemeridade da vida. Nanda não existia mais, os
seus belos e serenos olhos azuis não se abririam mais, e a sua voz, que
proferia palavras firmes e confortantes se calara para sempre.
E ali, na minha
frente, a La Pietá ganhou vida. Mudaram-se apenas os personagens: era dona
Sofia, que com o semblante carregado de dor, acarinhava sua amada filha, que se
despedia para sempre. Seu mundo parecia ter desmoronado, seu sofrimento era
incomensurável.
A piedade,
retratada na obra genial de Michelangelo, ganha vida todas as vezes, que uma
mãe se debruça diante de um filho que se adianta, que se antecede, e que se
vai, contrariando o curso natural, a lógica da vida. Como se a vida tivesse
lógica...
Por esse, e por tantos outros
exemplos, que vi de perto, confirma-se que a vida não tem lógica, nem curso
normal, e que a única certeza é a de sermos impermanentes. Vivamos, pois, o
agora, que é a nossa garantia, e deixemos na vontade de Deus o futuro que
pode existir ou não. E que a La Pietá, o sofrimento alheio, sempre encontre no
nosso coração a mais pura compaixão, o mais firme abraço, ou apenas o silêncio,
que servirá de alívio, de lenitivo, para o que imaginamos ser a mais cruel de
todas as dores do ser humano, perder um filho".
(Socorro Melo)