Saí da Escola
apressada, e andei a passos largos, quase correndo, em direção à Prefeitura.
Era quase meio dia. Sentia fome e calor, mas estava determinada a atingir o meu
objetivo. Olhei mais uma vez para dentro da bolsa, a fim de me certificar de
que a carta estava lá. Minutos depois, cruzei o limiar da porta principal, do
prédio da Prefeitura, e segui em direção ao Gabinete do prefeito. Àquela hora,
todos os dias, ele despachava.
A porta do
Gabinete ainda estava trancada, e o rol à frente, estava repleto de gente,
todos adultos. Alguns me olhavam de soslaio, como a imaginar o que eu estaria
fazendo ali, num lugar de gente grande. Eu sentia meu corpo tremer, de
nervosismo. Mas era preciso. E quando precisamos, dizia minha mãe, devemos ser
humildes, e buscar o que queremos sem medo e sem vergonha.
A porta se
abriu. O povo avançou, e por breves instantes, se fez um pequeno tumulto. Todos
queriam salvaguardar um bom lugar, próximo à mesa do prefeito, para garantir
atendimento rápido. Quase me atropelaram. Rodopiei no meio da confusão, mas,
por fim, saí ilesa, e me juntei aos demais, bem atrás do aglomerado que se
formou.
As horas
passavam rapidamente. A fome aumentava. E angustiava-me saber que depois de
tudo, precisava caminhar uns três quilômetros para chegar em casa, num
escaldante sol de verão, bem nordestino.
O prefeito
despachava junto aos adultos que, às vezes, saíam satisfeitos, outras, saíam
contrariados, mas, todos eram atendidos, um por um. Era tudo muito lento, a meu
ver. Por um momento pensei em desistir, sair dali correndo, ir para casa
descansar, comer , mas, o senso de responsabilidade, aliado à necessidade, me
obrigaram a ficar, quietinha, aguardando a minha vez.
Quando eu
começava a me aproximar da mesa, achegava-se um adulto, e passava à minha
frente, e eu, indefesa e humilhada, ia ficando para trás. A fome e a sede
estavam me torturando, e sem querer, comecei a chorar baixinho, mas, percebendo
o meu erro, sufoquei as lágrimas, e limpei os olhos com as costas das mãos.
Neste momento,
num vão por entre as pessoas, o prefeito me viu, e perguntou aos presentes, de
quem era aquela criança. Ninguém respondeu, apenas balançaram a cabeça
negativamente. O prefeito pediu que as pessoas abrissem passagem, e me chamou
para junto de si. Pediu que a secretária me trouxesse um copo d’água e com um
lenço enxugou uma lágrima que teimosamente caía dos meus olhos.
Perguntou a que
vim, e eu, toda trêmula, entreguei-lhe a cartinha que eu mesma tinha feito, mas
que assinara como se fosse minha mãe, pedindo ajuda para comprar os livros da
5ª série.
Minha mãe me
advertira que eu só iria estudar até a 4ª série, pois que não tinha condições
de me manter na Escola. Apesar de ser Escola pública, o material não era doado,
como nos tempos atuais. Os livros adotados eram muitos, e caros, e tornou-se um
grande empecilho, e um grande desafio. Mas tanto insisti que ela me permitiu
estudar por mais um ano.
Ela teve a idéia
de pedir ajuda na Prefeitura, com a condição de eu mesma ir lá, entregar a sua
carta, pois, na ocasião ela tinha crianças pequenas e não podia sair de casa. E
eu fui, apesar de tímida, e de insegura, mas, nada era mais importante para
mim, do que permanecer na escola.
O prefeito
desdobrou o papel que eu lhe entregara, e leu demoradamente. A espera foi
cruel. Às vezes me olhava, depois voltava os olhos para o papel, e assim
sucessivamente, por minutos que pareceram eternos, dado o meu nervosismo
incontrolável.
Perguntou-me,
enquanto dobrava a carta, onde eu morava, e sobre meus pais, se trabalhavam, e
ouviu atentamente minhas respostas, que saíam entre lágrimas. Deu-me outro
lenço. Pediu-me para não chorar, e disse que atenderia o meu pedido.
Apanhou um talão
em cima da mesa e pôs-se a escrever, depois destacou a folha em que escrevera e
assinou, carimbou, e me disse que fosse à Livraria receber meus livros, todos
eles, que eram em número de oito a nove.
Eu agradeci, e
quando ia me retirando, ele me chamou de volta, e disse-me que a porta do seu
Gabinete estaria sempre aberta, e que eu voltasse, sempre que precisasse. Que
admirava crianças e jovens esforçados, que lutavam com afinco para garantirem
seu lugar ao sol. Olhou para os presentes que estavam calados, e citou-me como
exemplo. Apertei sua mão, como faziam os adultos, agradeci, e saí alegre, saltitando,
sem sequer me lembrar da fome, ou do calor, e mesmo dos três quilômetros que
iria andar à pé. Teria meus livros. Quanta felicidade!
Rumei para casa
sorridente, levando a autorização na bolsa, como se fosse um troféu. Sim, em
parte era um troféu, pois, era o resultado da minha luta interior, contra o
medo, a humilhação, a timidez, o desconhecido mundo de gente grande. No outro
dia, eu ficaria com as crianças, e minha mãe iria pegar os livros, todos
novinhos. Parecia um sonho.
A perseverança
me fez avançar, e consegui terminar meus estudos, me formar, me
profissionalizar... Cresci, venci muitos desafios, tornei-me cidadã, mas, nunca
me esqueci do gesto nobre do prefeito. E sempre tive por ele um grande
respeito, não somente pela minha experiência, mas também pelo homem público que
ele foi, honrado e cumpridor dos seus deveres, por vários mandatos
consecutivos, no Legislativo e no Executivo Municipal (como hoje infelizmente não se vê).
Quando adulta, tive oportunidade de agradecer-lhe pessoalmente, e o fiz com grande emoção, e
percebi o quanto foi importante para ele ter esse retorno. Ele não se encontra mais
neste mundo, já fez sua passagem, mas, o seu exemplo e a sua memória, são dignos de nota. Um homem de bem, um homem da luz.
(Por Socorro Melo)