Quando perguntei para uma pessoa do lugar onde morava Duda, ela ficou surpresa e perguntou:
-
A deficiente? De onde você conhece? – Perguntou. E indicou-me o caminho.
Seguimos, pois
não estava só, pelas ruas estreitas da Vila, e a poucos metros localizei a casa
da minha amiga. Fomos recebidas com alegria efusiva, característica bastante
peculiar a Duda. Conversamos por longo tempo, e quanto mais eu entrava no
universo dela, mais intrigada eu ficava.
Olhando para o
seu rosto, iluminado por um sorriso espontâneo, recordei da nossa infância.
Duda era bem diferente de mim, mas, sempre fora uma grande amiga. Eu gostava de
estudar, era tímida, calada, comedida, e Duda, o oposto. Não gostava de
estudar, era extrovertida, tagarela, e sem limites.
Lembrei de uma
de suas maiores travessuras: morávamos bem perto uma da outra. A minha casa
situava-se numa rua transversal à rua em que ela morava. Numa tarde de verão,
quando o sol já declinava no horizonte, ouviu-se grande burburinho na rua. Da
minha janela, observei grande movimento à frente de sua casa, e corri até lá,
para ver o que acontecera.
O lugar onde
morávamos era um pequeno povoado, um bairro afastado da cidade, cerca de cinco
a sete quilômetros. E imagino que metade da população se postava diante da casa
de Duda, naquela tarde.
O que aconteceu?
– perguntei a alguém. E responderam-me que pela terceira vez, naquele dia, eram
jogadas pedras sobre o telhado da casa. A família já havia investigado,
procurado, e não tinha a menor idéia de onde pudessem vir as misteriosas
pedras.
O povo do
interior nordestino é chegado a crendices, e logo se instalou a idéia de que
havia por lá uma alma penada, jogando pedras sobre a casa de Duda. É
assombração, diziam. Mandem chamar o padre, ou alguém para benzer a casa. Naquela
tarde as pedras não incomodaram mais, porém, no dia seguinte, o pesadelo
voltou. E assim, se sucedeu por vários dias, até que, depois de acurada
vigilância, descobriu-se a origem das pedras voadoras: Duda. Essa aventura
rendeu-lhe uma boa surra, no entanto, não seria uma coisinha assim, sem
importância, que lhe tiraria o gosto pelas travessuras.
E Duda aprontou
todas, sempre com um sorriso enorme nos lábios, e uma indiscrição fora do
comum. Era dinâmica, serelepe. Gostava de correr, de pular, de cavalgar...
Um dia,
voltávamos do açude, carregando latas d’água na cabeça. Quando estávamos bem
próximas de nossas casas, eu perdi o equilíbrio e a minha lata caiu, derramando
toda água, obviamente. A casa dela estava a poucos metros, porém, ela rindo
descontroladamente da minha desventura, derramou a água de sua lata, e voltou
comigo ao açude. E era assim. Com Duda,
as surpresas eram incessantes.
Saí do meu
devaneio, do turbilhão de recordações, e vi Duda ali na minha frente, agora
adulta, agora deficiente. Passados tantos anos, nos encontrávamos de novo.
Todavia, o que me intrigava, era a força que tinha a minha amiga. Foi amputada
ainda jovem, devido a um problema de saúde que desconheço, pois nunca lhe
perguntei sobre isso, depois, lutou ferrenhamente contra um câncer, e ganhou a
luta, e por fim, quando cheia de esperanças se preparava para colocar a prótese
da sua perna, que era o seu grande sonho, sofreu um terrível acidente, que
machucou seriamente a perna sã.
Duda encarou e
encara toda essa, digamos, desventura, com muita garra e determinação. Não se
lamenta, não se atormenta, e não se diminui. É cheia de esperanças, de sonhos,
e faz a vida acontecer. Conhece suas limitações, porém, não se comporta como um
ser imprestável, inútil, pelo contrário, é sinônimo de fortaleza, de alegria, e
de coragem.
Cuida da sua
casa com esmero. Ela mesma desempenha todas as atividades domésticas: lava,
passa, cozinha, limpa... E administra suas parcas finanças e seus interesses
com sabedoria. Em suma, um exemplo, uma lição de vida.
Penso que toda
energia que existia na Duda criança foi transportada para a Duda adulta, de
forma admirável. Quando a vi pela primeira vez, na condição de deficiente, de
cadeirante, fiquei penalizada, porém, em poucos minutos, senti vergonha de mim
mesma, diante da grande lição de vida que ela me transmitia, sem palavras, mas
com atitudes.
Por Socorro Melo