Da minha casa para o meu trabalho, não é muito longe. Vou e volto caminhando, todos os dias. Seriam agradáveis momentos, não fosse o trânsito. De qualquer maneira, ainda é melhor do que encarar ônibus lotados, que se arrastam qual tartarugas, por causa do famigerado trânsito.
A coisa é tão séria, que não me arrisco a ir sozinha, e todos os dias, convoco o meu anjo da guarda para acompanhar-me. Comecei a ter um relacionamento mais estreito com ele, há pouco tempo, pois, ingrata que sou, pouco me lembrava dele. Mas, descobri que chamando ou não chamando, ele sempre esteve junto a mim, e isso me alegrou, foi quando passei a reverenciá-lo, e conseqüentemente passei a lhe dar mais crédito, e mais trabalho.
E todos os dias, lá vamos nós, driblando um sem número de carros e motos, que considero verdadeiros monstros vorazes, pois, qualquer distração, pode nos levar a figurar nas estatísticas de vítimas do trânsito, que crescem assustadoramente. A situação é tão séria, que até meu anjo, tem receios de se aventurar.
Penso que antes, quando não éramos tão íntimos, ele se divertia comigo. Como tem asas, eu creio, pois não imagino o meu protetor sem asas – que anjo seria esse – pois para mim as asas significam liberdade e infinitude, e já que eu só posso voar com as asas do pensamento, pelo menos ele pode se dar a esse luxo - devia sobrevoar as vias mais perigosas e me esperar lá do outro lado, sorrindo dos finos que os carros tiravam em mim. No entanto, devia se divertir ainda mais, com a minha cara de contrariedade, por causa das motocicletas, que eu não tolero.
Agora, a coisa mudou de figura. A missão dele, como meu anjo particular, e meu amigo, é me levar pela mão mesmo, como se eu tivesse quatro anos. Diante do vai e vem dos veículos, das fileiras intermináveis, das barbaridades, da falta de sinalização, da falta de respeito por parte dos condutores imprudentes, da falta de espaço destinado aos pedestres, que disputam com os automóveis as mesmas faixas, eu me abandono em suas mãos e me deixo levar.
Não corro mais, não me desespero, não me estresso. Só atravesso na hora que ele me autoriza, e não me importa quanto tempo vou ficar esperando, parada, à margem das vias, ou da BR(104). Aguardo sempre o seu sinal, para fazer a travessia. A desordem é tanta, que creio eu, até para um anjo, é impraticável.
Pois bem, assim vamos nós, todos os dias, eu e meu anjo. Quando alcançamos os trechos menos movimentados, vamos conversando... Aliás, só eu converso, pois vou demandando uma coisa atrás da outra, sem dar-lhe tempo de, sequer, abrir a boca. Porém, quando me aquieto, posso ouvir a sua voz, mansa e serena, indicando como uma seta, ou uma estrela guia, a direção mais segura, para onde devo rumar.
É bom sabê-lo ao meu lado, senti-lo... Quer dizer, nunca sei onde realmente ele se posiciona, se à minha frente, atrás de mim, ou do meu lado. Todavia, sei que ele está lá, pois, vez em quando, me é permitido sentir o toque suave das suas vestes, numa brisa que passa, bem de mansinho.
No fim do dia, depois de nos expor a tanta poluição, sinto-me cansada, empoeirada, e sei que se me fosse permitido vê-lo, veria em suas vestes, certamente, as marcas de fuligem, conseqüência do monóxido de carbono, a que se expõe todo o dia, só para me proteger.
Nos finais de semana, dou-lhe descanso, quase sempre. E fico a imaginar ele repousando, e suas asas encostadas em algum recanto, as vestes limpas e alvejadas, sem o enfadonho compromisso de encarar as máquinas bestiais e seus condutores insanos.
E não tenho dúvidas, que no fim da sua missão, por cuidar tão bem de mim, e olha que isso não é tarefa tão fácil, ele será promovido a uma hierarquia superior, e habitará um mundo melhor, livrando-se finalmente desse trânsito infernal.
Por Socorro Melo