Dificilmente conseguimos associar beleza e sofrimento. Em nossa concepção, normalmente, pintamos o sofrimento com cores mais sombrias. No entanto, é possível percebermos o belo nas experiências de dor.
Na tela da minha mente as imagens iam se
moldando, à medida que a senhora Engrácia me contava a sua história. Quem por
ventura se aproximasse de nós, e se pusesse a escutar aquela história, a partir
daquele instante, poderia imaginar que sem sombra de dúvidas, tratava-se de um
filme, de terror.
As cenas eram chocantes.Contava-me ela, com os
olhos marejando, como ocorrera o assassinato de sua filha, há quinze anos. Dizia-me que presenciara toda cena, e que o tempo apenas conseguira
retirar o desespero e suavizar a dor, porém, o sentimento de perda permaneceu constante.
Eu, que sou mãe também, tentei à custa, me
colocar no lugar daquela mulher. Uma sensação incrivelmente desconfortante se
apoderou de mim. Não consegui imaginar meu filho no lugar da filha dela, é
inconcebível para uma mãe chegar a esse ponto.
À medida que ela
narrava-me a maneira brutal e injusta de como perdera sua filha,
invadia-me uma certa revolta. Em poucos instantes eu me encontrava mais
emocionada do que ela. Percebia até que ponto o sofrimento e a dor podem nos
assaltar, e o quanto a impotência nos limita. Percebia a nossa vulnerabilidade,
a nossa fragilidade diante da vida.
Perante tudo o que ouvia, surpreendeu-me
imensamente o final da história: a senhora Engrácia perdoara o assassino de sua
filha. Em momento algum durante a sua narrativa, referiu-se a ele se utilizando
de palavras ásperas, nem proferiu qualquer maldição e nem percebi no seu
semblante qualquer gesto que denotasse ódio, mágoa ou ressentimento.
Enquanto minha pobre mente já fazia julgamentos
sobre aquele infeliz que tinha roubado a vida daquela jovem, meus olhos quase
arregalados se encantavam com a beleza do que viam à frente: a beleza no
sofrimento. Só tristeza.
Como é possível para uma mãe, perdoar de verdade,
alguém que lhe rouba o que há de mais precioso em sua vida, um filho?
Custava-me acreditar que isso fosse possível. Mas, diante de mim estava a
realidade não crível: a senhora Engrácia.
Ela cresceu tanto diante de mim, que quase não
conseguia vê-la. Seus cabelos brancos, e as marcas visíveis da passagem do
tempo, no seu rosto, concebiam-lhe um ar quase sobrenatural. Procurei,
disfarçadamente, ver sua auréola. Meu Deus, pensei emocionada, como é tão
grande a nobreza daqueles que sabem perdoar! E como me incomodou constatar que
estou ainda tão distante dessa grandeza de espírito.
Depreendi o belo, oculto no sofrimento. Não nas
atitudes de rudeza, de selvageria, mas na elevação espiritual de uma alma
entregue ao amor de Deus, que se tornou
capaz de perdoar, e de absolver uma outra tão necessitada de misericórdia. A
grandiosidade do perdão, a sua particularidade, incita em nós, quando nos
deixamos por ela envolver, uma ardente vontade de amar, e de rever nossos
conceitos e nossas desarmoniosas concepções. Sou-lhe muito grata, senhora
Engrácia, por dividir comigo o momento mais doloroso, mas também o mais nobre
da sua vida, o seu batismo de fogo, a candura da sua alma.
(Socorro Melo)
2 comentários:
O sofrimento nos lança num buraco negro e em sua narrativa veio a luz divina do perdão que liberta. bjs
É preciso de uma sublime grandeza de espirito, para perdoar uma tão grande dor.
Eu não conseguiria fazê-lo.
Um abraço
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